terça-feira, 22 de janeiro de 2013



As correntes frias da brisa letal da montanha penetram e inundam a moribunda tarde. A penumbra da noite traz sombras bruxuleadas, anónimos espectros. A lua reverbera lá no alto, alcançando por entre as ramagens, vertendo na neve alva.

Esgueirando por entre a esparsa vegetação contra o vento, a concentração é inexpugnável, a intenção é sublime. Em redor, sente-se a aura de luz abençoada pela presença dos antepassados.

Algo em diante, lá em baixo, move-se e vive, alta e arrogante, um insulto ao recôndito ser. Porém desassossega-se sobressalta-se e foge.

Os músculos engatilhados em tensão disparam, levando por trilhos fragosos que a vista processa e o cérebro descodifica no espaço de um fôlego. Debaixo da pele a carne arde, o ar que os pulmões engolem é glaciar. A rota inconstante é antecipada a cada momento, o cheiro, de tão ansiado, é quase insuportável com a proximidade. Bramidos breves e agudos de desespero apressam o toque da Morte.

Colisão, debate e certeza. A energia desgovernada do medo não é desafio ao instinto e à experiência. Caninos penetrantes procuram encontrar-se por entre a carne. O líquido morno e espesso inunda tudo. Bebê-lo é como que proibido e vil mas sedutor, erótico. Os vapores que liberta encontram no ar os arfares fumegantes, mais calmos, rendidos à sua fortuna. Um na despedida, o outro na saúde.

Uma sensação de regozijo invade o corpo, dominador, uno com intrépido espírito. O céu parece fazer parte disso. A lua é cumprimentada ao mesmo tempo que os bosques são desafiados da maneira mais audível que sabe.

Num uivo.



Ahmat veio ao mundo numa fresca manhã de Abril.
Caiu com estrondo ressonante na gramada terra negra, provocando o desprendimento do cheiro húmido e quente do solo pela frescura orvalhada e clorofilina da erva.
O seu corpo era enorme e inerte mas a adrenalina fê-lo reagir. A intumescência nervosa dos músculos projectou-o a elevar-se. Titubeava nas patas. Aquele odor quente visceral e líquido dissipava-se no ar frio. A luz acossava-lhe as frontes. Sombras agrupavam-se em formas. Sentiu a língua pesada da mãe, limpando e orientando-o a esticar-se e interagir.

O seu pêlo era espesso, longo e farto, erecto, como fera ágil e bem nutrida que era. Mesclada de branco e cinzento, olhos escuros e submissos, Nawal, a mais jovem mãe loba de uma alcateia de dezassete, saudava o seu filho.

O odor a besta era único, mas Ahmat percebeu a destrinça entre os lobos pelo olfacto. Faten e Rami acercavam-se, dispersando o cheiro pelo abanar das caudas. Amáveis, farejavam de perto o pequeno, tacteando-o divertidamente com as línguas, de igual modo cumprimentando a mãe, submissas.
Por detrás das lobas duas pequenas criaturinhas aproximavam-se, hesitantes. De passo incerto, um lobito anafado e de pelo cinzento muito escuro e brilhante turrou de focinho em Ahmat, aninhado numa depressão do solo. Imediatamente o cachorro agitava todo o seu corpo com estremeções violentas da cauda. Baki, umas semanas mais velho, adorou logo o seu primo, saltitando jocosamente para o lado e para a frente, a provocar Ahmat e derrubando inadvertidamente Ghezal, a pequena lobita castanha que os acompanhava.

Ghezal encostou o nariz no de Ahmat com extraordinária leveza. O cinzento claro resplandecia dos seus olhos muito abertos, fitando o novo membro da família, nervosa com Baki atrás empurrando, irrequieto, e as lobas, ora atentas, ora lambendo maternalmente e turrando os lobitos.
O cheiro dos dois era delicado, apetecível, o de Ghezal quase floral.

Ahmat ergueu-se, animado, despertando ainda mais a atenção e os olhares alegres.
Distante, detectou agitação nas terras baixas em frente. Uma amálgama vibrante e hirsuta de cinzentos crescia e cobria o horizonte. Latidos nervosos, rosnares prontos e estalidos de dentes ressoavam e desassossegavam.
Num instante os pequenos lobos desapareceram e as lobas abriam alas. O chão estremecia às pisadas seguras e destravadas dos lobos.
A cabeçorra que assomou diante dele impedia-o de discernir não fosse, temperado com o odor ferrugento a sangue, o cheiro que já se tinha feito anunciar. O cheiro que em parte os outros traziam, e ele também. O inconfundível cheiro a lobo.

A comoção que se seguiu fora demais para o pequeno cachorro entre a confusão de focinhos, farejadelas, trombadas, sacudidelas, estridentes latidos e empurrões. Em breve sentiu-se transportado diligentemente de cachaço entre os caninos da sua mãe, Nawal, cujo arfar quente e tão próprio hálito o alentava.

Exausto, no covil, aninhado no calor e no cheiro delicioso de tão familiar, dormiu.


No ventre quente e pulsante da mãe sentiu um botão sedoso que provocava a roçar o focinho. Instintivamente abocanhou-o fazendo um líquido morno e saboroso inundar-lhe a boca. Bebia até se saciar.

Durante o dia deambulava perto do covil, junto da mãe, das duas lobas e dos pequenos lobitos. Excitado, Baki mordiscava e encavalitava-se nos outros dois, obrigando-os a jogar o mesmo jogo.

Em algumas semanas Ahmat tinha já sido visitado por todos. Em poucos meses o pequeno e discreto lobito de fronte cinzento mercúrico, focinho branco e olhos amarelo âmbar tinha uma presença, reconhecida e zelada.

Mais móvel, atrevia-se junto dos restantes. Um grupo de jovens lobos parecia ignorar os três mais pequenos, saltando e pelejando energicamente.
Leyla, a loba matriarca, de olhar preciso e penetrante, amiúde encontrava-se perto da jovem matilha, quando a sua filha, Keyla, participava nas caçadas e os seus filhotes Caleb, Yusuf e Khalej, enérgicos e exploradores exortavam a outra disciplina. Prolongavam o estrépito secundando os latidos a Mousa, Ghazi e a pequena fêmea Talitha.
Siderado pelo vigor e perícia dos seis, Ahmat frequentemente imiscuía-se, mimetizando o mesmo ímpeto e audácia. Baki e Ghezal imitavam-no, com outra cerimónia. Invariavelmente a complacência dos mais velhos era escassa, pois os três eram mordidos, derrubados, cercados e enxovalhados. Ghezal alternava de tácticas, nunca encarava o grosso da matilha dos seis de frente, geralmente esperava a provocação de Ahmat, e já a contar com o reforço pronto de Baki para com o cachorro que mais castigava o primo, seleccionava o segundo mais estouvado, desencorajando o primeiro. Baki, oportuno, fugia assim que um outro cachorro se agrupasse contra ele, e quando a Ahmat não lhe ocorria recuar, laureado de sovas massivas, atropelado na lama, de ventre para cima e de dentes arreganhados, prontos para abocanhar qualquer coisa, quando o rodeavam e mordiam, até que desistiam aborrecidos e se punha de pé para lhes morder os artelhos.

No momento em que o vento trazia aquele odor que os fazia vibrar de temor e admiração extinguia-se o escarcéu. Salim e Keyla assomavam em passada rápida. Salim, corpulento e majestoso soltava pequenos uivos e estacaram ao longe. Automaticamente, Leyla e os pequenos seis, Faten e Baki, Rami e Ghezal e Nawal atrás, puseram-se em marcha, juntando-se aos primeiros dois. Ahmat colou-se à mãe.
Depois de algum tempo de trote, a última cortina de arvoredo desvendou, num plano inferior, lobos freneticamente a finalizarem uma matança. Como sempre, Akbar dava o golpe de misericórdia, enterrando os caninos na jugular do grande cervo e usando o maciço corpo para o imobilizar, com a ajuda preciosa de Mousa. Salim disparou na direcção, seguido de Keyla e Leyla. Um par de segundos bastou.

O odor vibrante e sanguinolento da carne corroborado pela voracidade dos lobos era um apelo a Ahmat. Nawal abria-lhe passagem. A morna e fumegante textura fibrosa e sumarenta espremida entre os dentes produzia um sabor indescritível, a gordura e sangue, bastante viciante. Roê-la dos ossos, e esmagar e sorver o interior destes era ainda mais prazenteiro. Em breve a figura do animal pacífico e básico que era o cervo ocupava uma amálgama de órgãos rasgados, ossos fracturados, em disposições que não eram as originais, com retalhos de um invólucro de pele.

Akbar garantia o temor que era estar no seu caminho, sobretudo à refeição, mordendo e rosnando em tudo que estivesse entre si e a porção seleccionada. O grande lobo azulado de negro, como mercúrio líquido, de olhos amarelo âmbar condensado, inspirava supremacia, em cada passo, em cada olhar, em cada postura. Faisal era o seu seguidor inseparável, intrépido e briguento, sobretudo com Akbar por perto. O cinzento argênteo do seu pêlo parecia corroborar o azul de gelo glaciar dos olhos.

O último da tripla mortal era Salim, cinza escuro de focinho branco, sossegado, discreto, talvez mais corpulento que o próprio Akbar, facto insuspeito pela sua postura submissa. Na hora da verdade era tão mortífero e implacável quanto Akbar não fosse ele, juntamente com Keyla, seus irmãos.

Estes quatro, juntamente com a autoritária Leyla, eram os que mais reivindicavam os despojos. Nawal, Faten , Rami juntavam-se cerimoniosas, rodeando os cuidadosos lobinhos.

No espaço de alguns meses, a nova geração de lobos ia sulcando o lugar de cada um dentro da matilha. Possuindo um grande ascendente sobre os seus irmãos Yusuf e Khalej, Caleb assumia a liderança do grupo, alentado pelos dois e seguido de Mousa, Talitha e do circunspecto Ghazi. De peito largo e musculado, o garboso lobo cinzento estancava à frente da irmandade de uma forma majestosa.


Em breve juntar-se-iam a Salim, Keita, Faisal e ao irredutível Akbar. Este Seguia em frente da matilha, estugando o passo por entre trilhos e ravinas, fitando o horizonte, farejando as fibras do vento e escutando cada silvo, ladeado por Faisal, seguido de Keita e Salim. O pêlo de cinzento carregado recortado à neve salientava-lhe o intento espelhado no olhar, olhar de um brilho profundo alimentado à avidez de matar.

Juntamente com Ghezal e Baki, Ahmat via-os partir perguntando se chegara a sua vez. Virando a cabeça para trás, o olhar fixo e autoritário da mãe fazia-o entender.
Reforçada, a alcateia proliferava. A particular adição de Caleb revelava-se sobejamente frutífera. A sua argúcia e valentia elevava as tácticas de Akbar à perfeição. Era ele que amiúde cortava o caminho às presas fugitivas, antecipando as suas rotas, lendo o terreno e usando o vento como ninguém. Com a força combinada dos seus atentos irmãos a deterem a vítima, pela altura que chegavam, Akbar, Faisal e Salim empregavam todo o ímpeto e implacabilidade numa vítima já à mercê. A empresa era rápida e infalível.
A voracidade era geral. Apenas Baki e Faten, perante o olhar ameaçador e breves exibições das alvas presas de Akbar, ficavam para último.
Regozijado pelo seu papel, Caleb dilacerava as entranhas do veado fêmea de quem ainda há momentos vira o mudo desespero nos olhos quando saltou do seu esconderijo para a derrubar, uno com a neve e esparsa vegetação, para lá das manchas negras alvoraçadas que a perseguiam.
Incerimonioso, abocanhava o ventre macio, sacudindo a carcaça, arredando-se ao centro. Ao centro estava Akbar.

Num momento, Caleb julgou estar no covil, em onírica leveza, sonhando com vertiginosos perigos e com gélidas calmarias.

Cego de raiva, era a imagem da loucura de focinho transfigurado pela boca tão arreganhada de bramidas fileiras de dentes com que alvejava na embalagem do maciço peso do seu corpo. Caleb recuava e defendia-se conforme pôde, atónito com o choque, congelado com a surpresa. Akbar retomou o seu amplo e desimpedido lugar com a serenidade e a calma do definitivo alfa.

Na saciedade, sentia-se a família. Álacres e jocosos, brincavam às peleias e partidas, de olhar meigo e caudas bramidas. Faten e Baki eram o seu expoente, frequentemente de barriga para cima e arfar risonho.

A montanha parecia sorrir nos regatos rasgados que cofiavam sinuosamente as encostas detendo-se nos lagos. O som da senda da água saudado pelos cucos de manhãzinha e pelos mochos à noitinha dizia-lhes que estavam em casa.

A alcateia proliferava. Nenhuma presa era desafio de exagerada ambição. Nem o grande Elk, enorme e pesado macho de frondosas e densas hastes, se deixava confrontar, fugindo em debandada como os restantes.

No dealbar da primavera, Ahmat sentia o pulsar da vida em tons de vermelho, fulvo e verde. Os sons multiplicavam-se e provocavam-se, a terra falava, as árvores dançavam, sob a bênção do sol. O coração enxugava as experiências do seu nariz irrequieto, da boca ofegante e dos olhos lacrimejados. No zénite, transbordou de gratidão pela vida, orgulho da sua raça, da sua flexibilidade, os reflexos, o conhecimento, e pelos elos inquebrantáveis à sua mãe, aos seus companheiros, aos seus.

Uma tarde, Akbar Faisal e Salim ergueram-se tensamente e caminharam decididos. Era hora de caçar. Atento, Caleb prontamente se lhes juntou, secundado pela escolta dos irmãos, Yusuf e Khalej e também Talitha e o relutante Mousa. Sobressalto geral, quando, mais próximos dos primeiros três, Ghazi já lá estava, como uma sombra, uma grande e espaçosa sombra de negro cinza, denunciando-se nos cintilantes olhos vagos de azul céu.
Akbar deteve-se. Concomitantemente e sem surpresa, Mousa e Salim estancaram, também, virando a cabeça para trás, olhando quem ficava.
Keyla adivinhava-se novamente prenha, junto de sua agastada mãe. Condição que partilhava com Faten, acompanhada de Nawal e Rami.
O olhar de Akbar não era apenas uma breve despedida. Era algo mais. Mirava insistentemente à distância. Rodopiou o corpo e olhava fixo, emoldurado por Faisal e Salim. Os restantes entreolhavam-se.

Sentado no chão de ar suplicante e cinicamente consternado, rodeado de Baki e Faten, Ahmat percebeu. Latiu nervosamente. Pôs-se de pé abanando a cauda, olhando ora para trás, para umas impávidas Leyla e Keyla e umas nervosas Nawal e Rami, e depois disto, mais decididamente para a frente, para Akbar diante de si ao longe e a matilha de orelhas erectas mirando-o também na sua agitação.

A serpenteada cauda empurrou vento para os focinhos de Baki e Ghezal quando Ahmat por eles passou, submisso, a trotear para Akbar.
Yusuf, Khalej, Mousa e Talitha recebiam-no como já não o vissem por mais de um mês, disposição brincalhona, roçares e lambidelas. Baki e Ghezal entreolharam-se. A última ergueu-se e caminhou firme. Baki olhava, pondo a cabeça em ângulos diferentes. Olhou para Faten, sua mãe prenha, prostrada no chão parecia ter outras preocupações, olhando desinteressadamente de viés.  Chegara a hora.

Nawal mirava os três a contraluz, cada vez mais próximos do seu destino. Àquela distância pouco usual o enorme e peludo lobo cinzento escuro e branco neve seguido da formidável e decidida loba de cor de folha de ácer outonal e o volumoso lobo de tons pincelados de cinzento em orlas graduais nem pareciam o seu Ahmat, Ghezal e Baki.

Ahmat estava eufórico. A sua primeira caçada. Pelos semblantes de Ghezal e Baki dir-se-ia sozinho no seu entusiasmo, como principiantes. Saltitão, observava o redor como que pela primeira vez. Forçava os sentidos a estarem alerta, até o pardal no mais longínquo ramo era merecedor do seu frenesim.




segunda-feira, 21 de janeiro de 2013



Sempre estive distante, observando o mundo como uma margem desde para lá das rebentações, sacudido pelas hesitações do mar. Atrás, a margem negra e misteriosa da Morte. Cada vez mais cercana e ubíqua.


Espírito competitivo, nunca tive nenhum, se se implica vencer para além de vontade. A pressão do peso das expectativas paralisava. Sempre que tinha de ganhar, perdia. Como se a importância que finalmente decidia atribuir invocava hordas de demónios castradores.

Estranha sina, eu digo. Pois se na descontracção ressaltava algum talento, quer no desporto quer no raciocínio, quando era a contar eu era, invariavelmente, o pior.


Tentei esconjurar as estranhas amarras. Maldição ou não, nunca se dissipou. Talvez desdita por uma outra vida passada em soberba.


Eu sou um perdedor nato.


Pior que isto, considero que tenho a faculdade de arrastar outros para a desfortuna.


Oportunamente, eu diria, com pouca ou nenhuma empresa da minha parte, o amor ia surgindo, como enseadas de água translúcida onde a minha fátua jangada de fiapos serenamente ancorava, para que eu não me perdesse na dilacerante introspecção e solidão.


Como ela surgiu está para além de qualquer explicação, qualquer coincidência. Se me detivesse por dias e semanas a conceber a ideia de alguém que me fosse perfeito estaria sempre em defeito.


De olhar sempre puro, o seu sorriso é o de uma criança presenteada. Os seus gestos, a delicadeza e a precisão de um pintor em êxtase. A sua generosidade é uma margem congregada e sem meandros, a sua bondade é a vastidão do azul-céu.


Veio para me salvar.

domingo, 20 de janeiro de 2013


Recordo-me da minha terra. Mas não com saudade. Sem culpa, apesar de ser Benfica. 

Árida e estéril de bons sítios, daqueles amplos e intemporais, onde as pessoas orbitam e criam. Trilhada de fileiras de prédios. Mea culpa, é de mim que não tenho saudades.

Criança vil de tão insignificante. Cultivou medos e receios que lhe fissuraram o carácter. 

Lembro-me dos prédios altos, de 8 andares, dos recortes de sol às diferentes horas de cada estação. 
Da forma como a luz penetrava recta pelos intervalos de uma divisória atijolada e parecia sustentar errantes partículas de pó pela manhã.

O mesmo pássaro pipilava com exactidão a mesma melancólica melodia, na aurora e no crepúsculo. 
Carros por toda a parte, da minha janela lojas ladeadas de diferentes metiérs, café, drogaria, vestuário, talho, desporto, clínica veterinária, fotógrafo, ginásio, oficina. Nestes dias conjecturo agências bancárias e imobiliárias, como de resto por toda a parte.

Lembro-me da feira que se realizava em frente, várias vezes por semana, de manhã, num pequeno descampado. Como se chamava mesmo aquela senhora gorda de óculos ?... lembro-me de fornecer o caldo verde, cortado na hora, e outros hortícolas. As pessoas circulavam com trolleys carregados.

Lembro-me da praça, essa arena monstruosa e frenética. Da estrada de Benfica, o vislumbre dessa outra casa que era a igreja. Mais à frente ficava a pediatra, depois de uma casa de gelados que nunca percebi se fechou, fui lá duas vezes mas sempre ficou no meu imaginário, o meu primeiro gelado de copo e colher. Ao lado a fiel churrascaria de frangos, pouco à frente a barbearia onde cortei pela 1ª vez o cabelo. Ainda antes da pediatra. 

Ramalhete de toldos e nomes cujo arranjo ainda trago impresso na memória.

Papelarias, lojas de ferragens, cafetaria e têxteis. Lojas escuras que nunca  entendi. 

Muita coisa que não entendia nem tentava, delegava para os adultos. 

Lá à frente, a sapataria Guimarães. Mesmo perto da paragem onde recebi o 1º beijo apaixonado... 
Incrível como gostava dela. Pensei que não chegava a casa vivo. Sempre acreditei que quando Deus nos dá algo que queremos muito somos cobrados com juros.
Era um preço justo pelo o quanto eu queria esse beijo.

sábado, 19 de janeiro de 2013

 O porquê de existir ... é o algo e único que me escapa. 
Apreendo as minhas falhas, perante mim, os outros. Vislumbro os objectivos. Perante as fragilidades das suas sendas, todas em mim, soçobro. Qual o sentido.
 Acredito que ninguém me pode ajudar.

 Acredito que sou especial. Que sou dotado. O meu alignment é o Bem, vejo isso agora claramente. Naturalmente sou leal, sensível e um total incapaz de esperar ou desejar o pior das pessoas, portanto é algo que tenho procurado desenvolver, por defesa.
 A minha evolução nas relações sociais tem sido penosa. Avalio com o passar dos anos mais infalivelmente as facetas das pessoas. Acumula-se a falta de argumentos para deixar de as evitar.
 Na sua maioria as pessoas ostentam um volume de hipocrisia que me fere e faz recolher. Na sua maioria não é, porém, deliberado. Na sua maioria gabam-se dos seus princípios, das suas convicções... são apaixonados pela ideia, pois oportunamente os princípios facilmente se ausentam... 
Falam de expressão pungida de caridade, da caridade visível e comum, mas remetem ao oblívio um qualquer vizinho ou familiar necessitado. E visível é o termo... os princípios cumprem-se se visíveis, as pessoas são apreciadas e celebradas na medida da sua visibilidade. 

A sociedade é um "faz de conta"... Eu, sou um antipático arrogante de aspecto - ao fim de muitas opiniões, admito isso, apesar dessa interpretação ser uma película contaminada de alguém inseguro, reservado e polido - , mas um amigo tenaz, fiel e completo para quem simplesmente me solicitar. Ao invés, dá-se o deleite iníquo e perverso de simplesmente classificar segundo os seus padrões.
 Não lutarei contra essa opinião, isso significaria ter o poder de mudar almas ou com facilidade ser igualmente assim tão mundano.

 Somos animais sociais, é certo, precisamos uns dos outros. Gosto de pensar que só preciso de alguém. Uma dessa parte está designada e vitalícia. A outra corresponde ao resto que me permita viver, calcorrear o trilho da minha cultura, onde os meus gostos e hábitos estão arreigados, e obter os meios para o fazer.

 Acredito que estou por um objectivo. Algo me escapa, algo preciso saber. 
Acredito numa razão para ser assim tão diferente, tão básico, e concomitantemente tão repulsivo a quase toda a gente, gente que cada vez mais vejo como se obstáculo e empecilho à concretização plena, harmoniosa e feliz do meu ser, como peões desalmados condenados à mediocridade, tendo como sola importância engrandecer o carácter dos outros, pela humilhação, injúria e privação. Não obstante, sinto-me bem longe. 

Afastado da iluminação.